E assim nasceu o corvo, condenado à morte ainda ovo.
Fruto de uma rara traição na sua raça, foi abandonado pelos pais entre duas rochas.
Certo dia uma velha víbora já enfraquecida, tentava partir uma noz com uma pedra. Com problemas de estômago, dentes frágeis e veneno estéril, cruzou-se com um pequeno berlinde ainda cinzento. Sabendo que pouco tempo de vida lhe restava, engendrou o derradeiro plano:
A última caçada! – sorriu a cobra com poucos dentes mas com muita manha.
O ovo mole era ainda demasiado pequeno para a satisfazer e, com este esquema sentiria novamente a emoção que lhe fugia há uns anos. Bons velhos e vigorosos tempos – lembrou, ao mesmo tempo que uma gota de saliva se lhe escorreu da boca até ao rabo.
- É só esperar meio mês! – Decidiu.
Aquecer bem o ovo, esperar que o rebento saia e ataca-lo que nem caça grossa. – Imaginou.
Passadas umas semanas, o franzino e trémulo corvo bicou o ovo sem sucesso. A experiente víbora, excitadíssima com a possibilidade de voltar a caçar, pegou na noz e rachou o ovo; o corvo pôs-se a caminho da luz e a cobra arrancou-lhe a primeira coisa a sair da casca: a pata.
Mas a emoção foi tanta que o coração não aguentou o disparo e, fulminantemente, de velha passou a morta.
E assim sobreviveu o corvo, condenado à morte ainda ovo.
A pobre cria voltou para a casca. Com fome, sem força na pata e sem penas nas asas para alcançar uma noz que avistava a uns metros, alimentou-se da cobra. Os seguintes vinte e cinco dias passou-os a olhar para a noz, com ânsia de ter penas e voar até ela. Os dias foram passando; as penas, as asas e a ânsia de comer a noz foram crescendo.
Já com força e cheio de esperança, mirou a noz, ganhou fôlego e levantou voou em direcção ao fruto seco. Atrapalhado, caiu desamparado a um metro do objectivo, partiu uma asa e viu a noz ser resgatada por uma gralha já adulta.
E assim cresceu o corvo, condenado à morte ainda ovo.
Todos os dias, ao dormir, sonhava que lhe era permitido andar e voar, comendo todas as nozes que encontrava, chegando primeiro que outros animais. Acordava sempre com a certeza que tinha as duas patas. Espreguiçava as asas, dava o primeiro passo e, ao segundo, caía para o lado.
Tinha um ar débil. A sua alimentação resumia-se a raízes desnutridas e frutos podres; os únicos seres que conseguia perseguir e caçar ao pé-coxinho eram caracóis e lesmas, mas contrariando os hábitos carnívoros e necrófagos da sua espécie, recusava alimentar-se de animais; a víbora tinha sido uma excepção. Puro instinto.
Pobre cobra, queria roubar-me a vida e acabou por ma oferecer. – Concluiu ao adormecer numa noite como tantas outras.
E assim envelheceu o corvo, condenado à morte ainda ovo.
Certo dia ao acordar…
Ouviu gargalhadas em tom muito fino. Recompôs-se da queda. Estava a sonhar novamente.
Ainda de olhos fechados, não quis dar a asa a torcer e, orgulhoso, continuou com a cabeça dirigida ao sol.
Mas aqueles risos irritantes prolongaram-se…
Abriu o olho direito, olhou de esguelha por trás da asa e observou duas toupeiras a comer nozes e a rir, de costas no chão batendo com as patas na barriga.
- Viste aquilo? – diz, quase sem ar, uma toupeira para a outra.
- Cala-te que dói-me a barriga de tanto rir! – respondeu a outra
Tentou aproximar-se delas com o intuito de pedir uma noz, mas as toupeiras entraram no primeiro buraco que encontraram. O som dos risos foi-se abafando progressivamente.
Muito devagar, o corvo, na esperança de poder saborear um bocado de noz, dirigiu-se até ao local. Encontrou apenas cascas partidas.
A partir desse dia, começou a acordar com o riso das toupeiras.
Um dia as duas inseparáveis roedoras, ao preparar o assento á sombra para assistir ao espectáculo matinal, olharam em frente e viram o corvo moribundo deitado no chão.
Piedosamente, pegaram na noz e aproximaram-se dele.
O corvo levantou-se de repente, esgotando toda a energia que lhe restava, e perguntou-lhes:
- Quem me faz acordar ao som de gargalhadas todos os dias?
As toupeiras, ainda estupefactas, cruzam o olhar durante segundos, olham para o corvo e respondem arrependidos:
- Somos nós!
- Noz?
E assim morreu o corvo, condenado à morte ainda ovo.
1 Únicos comentários disponíveis::
Belo momento de criação literária. Sim senhor. A isto chamo de inspiração ;)
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